17 de abril de 2009

O Fartura


Naquela altura íamos a pé com a avó, das Sobreiras à Bemposta, para lhe ir levar o almoço: cozido de grão, "jantarinho" de feijão com arroz, carapaus alimados, peixe frito com molho de tomate e pimentos, sempre acompanhados com toscas fatias de pão, cortadas com um canivete do qual nunca se separava. A ementa era pobre, pouco variada, e nunca contemplava os seus pratos favoritos por serem necessariamente feitos "na hora": arjamolho, papas de milho (do caldo do peixe ou da caldeirada) e açorda da água do bacalhau. Tenho saudades de saborear estes pratos, com aquele gosto que só ele lhes sabia dar.

Tirava a boina e sacava o lenço para limpar as gotas de suor da cara, antes de nos beijar. Depois sentava-se com os outros homens, fazia uma careta ao farnel, comia, bebia vinho e brindava assim:

"Eu bebo este copinho,
E digo com muita alegria,
Viva a real sociedade,
E os que estão em sua companhia!"

"Eu bebo este copo de vinho,
E digo com satisfação,
Viva o António Nascimento,
E todos os que aqui estão!"



Recordo com ternura as marcas do tempo, na pele exposta ao vento do Inverno e à torreira do sol no Verão. Lembro-me do seu caminhar, num gesto decidido e apertado atrás da máquina de cortar a relva, e retenho fresco aquele cheiro "a verde", da relva acabadinha de cortar. Ainda sinto o odor adocicado das esteiras, (naquelas noites de um calor sem igual), orgulhosamente feitas à mão, por umas mãos secas e ásperas, símbolo de anos de trabalho árduo.

Nos desacatos com a avó, soltava para o ar uns "Tal tá a porra, heim!?" e outros "Ah, fado dum cabrão!" enquanto descascávamos favas, partíamos amêndoas, britávamos azeitonas , ou depenávamos passarinhos. Mas tinha um coração enorme e, apesar de não ser do género de andar sempre aos beijinhos, tinha no olhar um brilho indescritível quando nos presenteava. Os presentes que recordo com maior carinho são uns patins, (devia eu ter uns três anos) e o órgão que orgulhosamente me ouvia tocar no "Faducho".

Depois veio a fase dos problemas de saúde. A sensação impotente de o vermos entre os hospitais de S. José, Santa Marta, Santa Cruz e o do Barlavento Algarvio, remetem para as recordações menos boas, mas levam-me a adorá-lo ainda mais, pelo homem que era.
- Vai com cautela, filha. Dizia, (quando conseguia falar), ao mesmo tempo que se emocionava com a minha partida.

Há três anos atrás, no Domingo de Páscoa, não chegámos a ver o sorriso comovido e contente que esboçava, quando eu e a minha irmã o "obrigávamos a pagar contratos". À semelhança dos anos anteriores, recebemos um pacote de amêndoas tipo francês, adquiridos com muito amor na mercearia do Sr. João. Nesse dia, o relógio do avô Fartura esperou por nós para parar. Este ano já não recebemos as "páscoas" como antes.


1 comentário:

  1. LINDO! LINDO! LINDO!
    Desatei para aqui a chorar (ainda bem que estava sozinha) porque me tocou cá dentro e trouxe outras mas parecidas recordações do meu também muito querido avô.
    Sente-se que há muito Amor e emoção nessas palavras. Guarda este texto e um dia dá-o aos teus filhos quando eles já forem mais crescidos como a lembrança de um tesouro que tiveste o privilégio de ter na vida.
    Isabel

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